quarta-feira, 29 de outubro de 2008

mel

Seu corpo ficava miúdo, encolhido no meio da cama. Os fios loiros espalhados no lençól.
- Amélia, assim não dá. Toda vez que você ganha esse jogo, ele trava. Aí lá vai você resmungar na cama.
- Eu fico nervosa, esse é o meu jeito de descarregar a raiva.
- Mas me deixa aflita, sem saber o que fazer. Não fica assim, é só um jogo.
Afastei seus cabelos delicadamente com a ponta dos dedos e beijei-lhe a nuca. Ela riu. Continuei pelo pescoço, os ombros, o queixo...
- Você é como um sonho.
- E você é uma coisinha nervosa e emburrada.
Beijei-lhe a boca. Amélia tinha um gosto doce, dizia que era mel, por causa do nome, por causa dos olhos, por causa do cabelo. Deitei-me ao lado dela.
- É estranho - eu disse enquanto brincava com a barra de seu vestido vermelho.
- Estranho?
- É. Mas de um jeito bom. Não sei explicar.
- Eu sei. É novo pra você.
- É.
- Paula, o meu único medo é que você esteja levando isso como uma simples brincadeira.
- Como assim? (e não é?)
- Eu gosto de você, quero ficar com você, e é sério. Por favor, tenha cuidado com o que está acontecendo com a gente.
Fiquei calada, aquilo me assustou um pouco. Notei que os olhos dela estavam úmidos, mas nada fiz para secá-los. Amélia virou-se para mim e, num sopro de voz, choramingou algo do tipo "fica até mais tarde hoje?". Eu não fiquei, eu não consegui.
- Esse calor me dá dor de cabeça.
- Quer que eu compre um remédio?
- Não, é só o calor. Me leva pra um lugar mais fresco.
Ligou o carro. Era bom sentir o vento no rosto, bagunçando os cabelos.
- Gosto desse seu perfume - ele disse sem desviar os olhos da direção.
- Parece manga.
- É, eu gosto. É um cheiro que é só seu, nunca senti igual.
Fez a curva. Avistei o lago com seus barcos e lanchas aproveitando o sol de sábado.
- Você dirige bem.
- Obrigado.
- Acho que você deveria me ensinar.
- Não sou um bom professor.
- Claro que é, só te falta vontade.
- Qualquer dia desses eu te ensino.
- Sei...
Estacionou. Descemos do carro e deitamos na grama, na beira do lago. Sua mão escorregou pela minha cintura e seu corpo se aproximou do meu.
- A gente podia ficar aqui até anoitecer, assim, abraçados.
- Mas é perigoso. E se aparecer algum louco? Eu sou menina, vou sofrer as maiores consequências.
- Eu te protejo. Ninguém vai encostar um dedo em você, só eu.
- Ah, então tá.
Fechei os olhos e deixei que ele me beijasse. Foi o nosso primeiro beijo, e eu senti uma coisa que nunca tinha sentido antes, algo como um aperto no coração, um medo imenso de deixar que ele entrasse na minha vida e...

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

duas vezes

A primeira vez que o vi, estava no ônibus, voltando pra casa, numa noite de domingo. Quando entrei e meus olhos alcançaram os dele, alguma parte de mim sorriu, não sei ao certo qual foi. Sentei-me perto, sabe, para poder percebê-lo, sentir o cheiro e os pensamentos, mas acho que foi ele quem sentiu, pois respirou fundo, escorregou o corpo no banco, fechou e abriu os olhos e, esboçando um sorriso, mirou-me. Tive vergonha do esmalte vermelho descascado nas minhas unhas, do tênis que um dia foi branco e do rosto corado, pegando fogo. Maldita timidez. Puxei o cordão duas paradas antes da minha, desci do ônibus e fiquei olhando seus olhos estranhos se distanciarem dos meus. "Burraburraburra", batia na minha testa enquanto caminhava para casa.

A segunda vez que o vi, estava numa mesa de bar, me controlando para não beber, por causa dos remédios. Quando meus olhos novamente alcançaram os dele, vi brotar em seu rosto um sorriso. Dirigiu-se até mim e, vendo que seria impossível chegar até a minha mesa, acenou. Eu acenei de volta, e desejei com todas as forças que ele tentasse encontrar outra maneira de chegar até mim. Ele estudou várias possibilidades até se convencer de que a melhor era passando pela mesa gigante, barulhenta e insuportável do pessoal da contábeis. Sendo assim, finalmente chegou onde queria, beijou-me o rosto e disse:
- Nossa, estou tentando chegar aqui desde aquele domingo no ônibus.

quase um ano

Encontrarei-me com aquele que nunca está cansado para me visitar, está sempre disponível, escreve poesias, compra presentes, acaricia meu corpo, dedica músicas, escolhe minhas roupas, seca minhas lágrimas, faz café, ouve minhas lamúrias e suporta minhas crises. Encontrarei-me com aquele que não tem medo de dizer "eu te amo".

domingo, 26 de outubro de 2008

outubro

Trinta e um graus celsius atrapalhavam o meu sono. Livrei-me do cobertor, da calça e da camisa social. Mudei de posição uma, duas, três vezes. Basta. Fui até o banheiro e me coloquei embaixo do chuveiro. Sentei-me no chão, com os olhos fechados, e deixei que a água gelada caísse sobre mim. Trinta e um graus celsius interrompiam o meu sonho.

sábado, 25 de outubro de 2008

marcelo

Gostava de ver seus olhos se abrindo, devagar, frágeis. Beijava-lhe a boca e dizia um "bom dia" ao pé de seu ouvido. Ele abria um sorriso que me mantinha alegre pelo resto do dia, passava os dedos por meus cabelos recém acordados, sempre com os olhos em cima de mim. Marcelo sempre foi muito disposto. A cama quente e aconchegante não lhe tirava a coragem de levantar, vestir-se e ir de bicicleta até a padaria comprar quatro pães franceses e dois pães doces. Chegava em casa suado, cheio de energia, tirava os sapatos e se jogava no sofá. Eu reclamava, a idéia de que o suor do corpo dele estava em contato com o tecido branco do sofá não me agradava. Marcelo apenas sorria, acendia um cigarro e me chamava de "senhora".
- Se é do agrado da senhora, me levanto agora mesmo desse sofá e vou para debaixo do chuveiro, que é o meu lugar.
Mostrava-lhe um sorriso e ia para a cozinha colocar a mesa do café da manhã. Ele vinha atrás, ajudava com as louças e os talheres, depois sentava-se e esperava que eu fizesse o mesmo. Geralmente, eu colocava algo pra tocar. Chico, Beatles, Bob Dylan, a gente gostava. Comíamos e planejávamos nossa viagem pela América do Sul, numa Kombi amarela, como em Little Miss Sunshine. Era impressionante a sujeira que ele fazia com a geléia de amora. Depois do café, lavávamos a louça e deitávamos no tapete da sala para fumar um cigarro e descobrir novos pontos interessantes no corpo do outro, iluminados pelo sol, ao som de Dig A Pony. Momentos como aquele sempre terminavam em sexo. Suas mãos, sempre decididas, abriam os botões da minha blusa, puxavam-na e jogavam-na atrás do sofá. Seus lábios, sempre carinhosos, passeavam pelo meu corpo nu, e depois encontravam os meus. Eu subia em cima dele, dançava no seu ritmo, fazia seus olhos virarem, sua boca secar, seu corpo tremer. Exaustos, acendíamos outro cigarro e conversávamos sobre Kubrick e Tarantino.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

aleatório, de uma noite de terça-feira

Os piercings que eu faço de brinco e nunca tiro, os vestidos e as roupas do meu pai que eu gosto de usar, o perfume com cheiro de manga, as unhas vermelhas, o batom discreto, o lápis nos olhos, o jeito de pentear (ou não pentear) o cabelo... será que ele percebe?

O meu olhar, que é só meu, quando olha pra ele, para a parte nua do pescoço que a camisa folgada deixa à mostra, e que vai me matando aos poucos com uma vontade louca de despi-lo por inteiro e beijar cada centímetro de seu corpo, um corpo que é só dele, e que me satisfaz toda vez que encontra o meu, naquela cama que é só nossa, e que me traz lembranças de ferver a alma, de arrepiar os pêlos da nuca.

Será que ele percebe? Minhas unhas nas costas dele, meus dentes nos ombros dele, meus gemidos roucos, meus olhos dilatados, meus sorrisos involuntários, meus lábios secos... O meu gosto, um gosto que é só meu, e que se mistura com a minha temperatura, o meu cheiro, a textura da minha pele, a minha voz baixa, os meus pensamentos altos.

O jeito que ele me olha, me beija, me sente e ousa... será que eu percebo?

talvez

Eram duas: uma verde, cilíndrica, um tanto maior que a branca, redonda. Ela colocou-as em minha mão, eu as encarei, analisei e tomei coragem para pô-las pra dentro. Depois veio o copo d'água, para empurrá-las ainda mais. Deitei-me na velha cama para esperar o efeito ainda desconhecido. Dormi.

Havia flores, eu podia sentir o cheiro, as pétalas tocando minhas pernas e mãos. Aqueles cabelos não eram meus, eles chegavam na minha cintura, devoravam o meu tronco, iam e vinham com o vento. A escada era altíssima, não conseguia ver aonde ia dar, mas subi mesmo assim. Engraçado, cheguei novamente ao campo de flores, mas o céu estava diferente, as nuvens desenhavam rostos conhecidos, entre eles, o seu. Tentei alcançá-lo, beijá-lo. O gosto era o mesmo, sua temperatura, a textura dos seus lábios. Era você. Puxei-o pela mão e mostrei-lhe as pílulas. A verde e a branca. Você tirou-as das minhas mãos, jogou-as longe.
NÃO. VOCÊ NÃO PRECISA DISSO. AS LÁGRIMAS QUE VOCÊ DERRAMA EU POSSO SECAR, É SÓ VOCÊ PEDIR, É SÓ VOCÊ DEIXAR.
Recolhi-as do chão, penetrei em seus olhos e subi novamente as escadas, te deixando ali, sozinho na confusão da minha cabeça.

Abri os olhos, assustada. Desliguei a música que você tirava no violão e fiquei olhando pro teto. Talvez fosse tarde demais pra deixar você chegar perto, mas imaginei como seria bom ouvir sua voz pela manhã e preparar o seu café.

domingo, 19 de outubro de 2008

abstinência

O seu gosto perdurou por dias em meus lábios, meus poros ainda exalam o seu perfume, ainda tenho suas marcas na minha pele. Ele se tornou um acessório indispensável na minha cama e, mesmo sem um pingo de amor, sentia-me bem ao lado de seu corpo masculino, de músculos rígidos e pêlos grossos.
Agora, dentro desse quarto, às dez da manhã, a única coisa que eu desejo é aquela sensação. Os corpos unidos, um dentro do outro, o suor, os gemidos roucos, os olhos comprimidos...

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

spaceship

Era forte, tão forte que não tinha certeza se sentia realmente, mas, pela primeira vez, teve vontade de seguir em frente, achou que valeria a pena, que ele não seria capaz de feri-la ainda mais. Nada é o que parece ser. Ele soltou sua mão, deixando-a cair e se perder na escuridão do vazio que havia deixado dentro dela. E então, tentando fugir daquela dor insuportável, entregou-se a outros, vendeu-se por tão pouco... que, no final da noite, ao dar-se conta do corpo estranho ao seu lado, lembrava-se da falta que ele lhe fazia, e ainda faz.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

tênue

1

A música deles começou a tocar, e ela acendeu mais um cigarro. A cidade lá fora gemia, agonizava. Não havia estrelas no céu, nem mesmo lua. Só se via a luz fria dos postes, das casas, dos prédios e dos carros. De repente, um vaga-lume adentra o quarto escuro e ilumina o porta-retrato. Ela olha, com olhos úmidos e escorridos, levanta-se da cama e registra a cena com sua polaróide. Sua cabeça doía quando chorava e, quando olhava para a luz, sentia que ia explodir. A luminosidade vinda daquele vaga-lume estava incomodando-a. Num rápido momento de insanidade, pegou a toalha que estava sobre a cadeira e matou-o. De volta à escuridão do quarto.

2

O sangue escorria vagarosamente pelo dedo indicador. Ele tentou, mas nunca teve talento na cozinha. Pecava pelo excesso de cuidado, dizia. No banheiro, estancou o sangue com a toalha de rosto, por falta de coisa melhor para servir de gaze. Sentiu o cheiro dela. Lembrou-se que ela costumava usar aquela toalha para secar os cabelos. Aproximou-a do nariz, respirou fundo e deixou que as lágrimas molhassem-na. Voltou pra cozinha satisfeito por ter lembrado do cheiro, do gosto e do calor que ela tinha.

3

Acordou com a luz do sol em seu rosto. O vaga-lume ainda estava ali, estirado no chão. Recolheu-o e jogou-o pela janela mesmo. O dia estava como de costume: ensolarado, pateticamente ensolarado. Enrolou-se no edredom e ficou andando pela casa dessa forma, ouvindo Dylan, fumando um cigarro atrás do outro, bebendo o resto de conhaque da garrafa. As pálpebras estavam ficando cada vez mais pesadas, deixou que cerrassem seus olhos e mostrassem a ela a bagunça que estava sua cabeça.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

amélia

Tinha cheiro de jasmim. E eu nem sei que cheiro tem o jasmim. Meus dedos corriam pelos fios loiros, azuis, verdes e lilás das ondas de seu cabelo. Seus olhos azuis eram infinitos, temia encará-los, temia me afogar.
Ela foi a primeira. Ainda posso sentir o gosto doce de seus lábios, a textura da pele, o arrepio gostoso na nuca. O nome francês que me lembrava o mel de seus lábios, Amélia. Fiz com que todo o azul daquele olhar se desmanchasse em lágrimas tão amargas que, de mel fez-se fel. Eu não a entendia, e nem fazia questão. Tamanha a minha estupidez, ontem vi Amélia, e ela fingiu que não me viu.

domingo, 5 de outubro de 2008

a noite

Era o corpo dele. O corpo dele em cima do meu. Gostava do contato da pele, a troca de calor e todas essas coisas físicas. Eram também os gemidos. Os gemidos dele quando alcançava o ápice, dentro de mim. E os olhos. Os olhos comprimidos, retorcendo-se a cada movimento meu e, quando se abriam, vinham-me dilatados, loucos e ferozes. A boca, os lábios, devoravam-me e violavam-me, deixavam marcas em minha pele, deixavam a marca dele. Eu era dele, servia a ele, com paixão e afinco.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

turbilhão

Droga, droga, droga! Acordei atrasada de novo. Jurava que era quinta-feira, mas era sexta. Tenho prova amanhã, não estudei, nem sei do que se trata. Talvez eu não consiga estudar hoje à tarde, quer dizer, eu não vou estudar à tarde. Minha menstruação está chegando ao fim, não via a hora de ficar livre disso. Se meu pai pagar a fatura do cartão de crédito, semana que vem corto o cabelo, troco a lente dos meus óculos, pago o Léo e o Renato, janto num restaurante caro, compro mais filmes para a minha coleção, além de livros de poesia. Preciso ter uma conversa séria com a minha mãe sobre o meu futuro escolar. Vou acabar fazendo História na UnB, e não cinema no IESB. Minha psiquiatra ainda não me ligou pra dizer o resultado dos meus testes, estou ficando louca. Estou pensando em não dormir em casa hoje, ou chamar alguém pra dormir comigo, não quero ficar sozinha de novo. Meu pai não dorme em casa há uma semana, só aparece pra deixar dinheiro, depois volta pra mulher dele. Minha mãe conseguiu vender a casa, vai se mudar aqui pro Plano, não terei mais deculpas para não morar com ela. Tenho que aproveitar o tempo que me resta, tenho que dar um jeito de falar com ele.